Subi os três degraus, esperei o cartão passar, sorri para o trocador, e entrei. Aquele era o meu laboratório de experiências. Onde todos os tipos se encontram. Como de costume sentei na janela, um hábito que me persegue desde criança, ou talvez, um sentimento: a curiosidade. Louca por placas, lia uma por uma para minha mãe quando nos aventuravámos pela cidade.
Abri a mochila, e puxei meu mp4, uma daquelas tecnologias que se tornam necessárias sem necessidade, mudei o botão de “off” para “on”... e nada aconteceu. A luz não acendeu, o nome da marca não apareceu na tela. E foi aí que o desespero momentâneo começou, como sobreviver aqueles longos 15 minutos sem música?
Mas uma música me atingiu, vozes. Em sincronia, tantas delas, que demorei alguns minutos para separá-las.
Uma delas me atingiu em cheio, era mais aguda que todas as outras. Era doce. Olhei para trás discretamente, e uma menininha de cabelos lisos e pretos, sentada no colo da mãe, apontava para fora do ônibus, dizendo palavras próprias, palavras dela. E poucas situações que vivi, foram tão bonitas quanto essa.
Uma árvore virou “atalaia”, um gato virou “tato”, e tudo isso para mim, era poesia pura. Era invenção, era criativo, era criação. Ela não estava limitada por um vocabulário com palavras certas, e adequadas para momentos, ela não montava um quebra cabeça, ela desenhava um quadro. Sua mãe tentava corrigi-la, explicá-la qual era a palavra “certa” e por momentos me senti realmente tentada em virar para trás e dizer: “não faça isso, sua filha é um poeta”.

E nesse dia, nada foi mais gratificante.


No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá, Onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois. Em poesia que é voz de poeta,que é a voz
De fazer nascimentos - O verbo tem que pegar delírio.”
Manoel de Barros
Meu olhar sustentava o horizonte, todo ele, com todos seus detalhes e pormenores. Era tanto, era muito, era pesado. Doía. Às vezes meus olhos caiam, quase piscavam, mas precisava daquilo, de todo o infinito. Meu corpo era vazio, de sentimentos, de alma, de amor. E cheio daquele horizonte, que me enchia de estafa, que me maltratava. Mas era tudo que tinha, tudo que dava a mim forma e matéria. Meus olhos oravam para que alguém os fechasse, deixassem enxergar por dentro, mas ninguém o fazia. Algum dia terei que levantar minhas mãos, e fecha-los eu mesma, não por eles, mas por mim. Ou talvez, eles sempre fiquem abertos. Sem piscar.


Fotos por Bárbara Fernandes, uma tarde de quarta-feira no campus do gragoatá.
Todo fim pede um recomeçar, dessa maneira são os ciclos, se fecha uma janela, se abre uma porta, fecha-se os olhos, abre-se a alma.
Olho no espelho, estático, ele sorri para mim e pergunta. E indaga. E questiona. Quer saber o que mudou. É aqui que estão as respostas.



Me reflita. E só.

(desenho: deviantart)